Meus contos

Conto 1
Anabella escreve

Anabella escrevia cartas. Todo dia se sentava após o almoço e redigia suas estórias para enviá-las aos amigos. Gostava de ser minuciosa para que o destinatário conhecesse todos os detalhes.
Anabella não dormia direito. Ficava pensando no que havia faltado incluir ou imaginava se havia sido suficientemente clara em sua narrativa. Algumas cartas eram para conhecidos próximos, pessoas que gostariam de saber o que estava acontecendo em sua vida. Mas geralmente dedicava mais tempo se comunicando com amigos distantes que não via há muito tempo.
Um trecho de suas cartas dizia o seguinte:


...Desejo-lhe muitas felicidades e que o amor possa bater a sua porta assim como aconteceu comigo. Estamos planejando um bebê. Estamos reformando o quartinho dos fundos para que o Marcos passe o escritório para lá e possamos usar o outro quarto para o bebê. Conto mais detalhes em outra carta. Estamos de saída...
Abraços
Anabella


Em outra, relatou o seguinte:


...Ontem fez uma tarde muito bonita. Aproveitamos o feriado para passear. Estivemos no zoológico, acredita? Parecíamos dois adolescentes tomando sorvete e tirando fotos junto às jaulas...


E em uma terceira:


...Estou grávida! Contei para ele hoje e estamos muito felizes.
A família dele vibrou com a notícia. Gostaria de compartilhar com minha família também... Você sabe... Aquele incêndio horrível! Eu sofri muito, fiquei quase três meses internada...Foram momentos difíceis nos quais você me ajudou bastante...Espero que, com minha mudança para cá e, com a chegada dessa criança, meu coração se acalme um pouco...




Houve um dia em que Anabella não escreveu. Ficou paralisada diante do papel até que começou a chorar. Chorou até que as lágrimas cessaram e ela continuou ali, sentada, soluçando baixinho.
Até que um homem apareceu. Ele disse frases desconexas. Ficou repetindo palavras sem sentido até que Anabella não viu mais nada.
Quando acordou havia uma enfermeira ao seu lado. Anabella tentou falar com ela, mas as palavras morreram na garganta. A enfermeira saiu apressada do quarto e voltou um instante depois, acompanhada de um médico.
-Você está no hospital geral de Monte Alto. Estamos cuidando de você.- disse o médico- Você se lembra do que aconteceu?
Anabella se limitou a balançar a cabeça.
-Consegue dizer o seu nome?
-Anabella- ela respondeu, sem entender porque aquele homem achava que ela não se lembrava como chamava. Mas estava muito cansada. Sentia suas pálpebras pesadas.
Quando acordou novamente, viu uma mulher debruçada sobre sua cama. Imediatamente reconheceu Elisabeth.
Anabella soube então que tudo se resolveria. A amiga cuidaria dela.
Marcos e Elisabeth viajaram por horas para visitar Anabella. Como esta dormira logo após a chegada deles, Marcos chamou a esposa para tomarem um café.
Marcos levou Elisabeth até a lanchonete do hospital. Sentaram- se e ele começou a relatar o que sabia:
-O médico me adiantou algumas coisas. Disse que ela estava agarrada a muitos papéis quando foi retirada de casa. Havia cartas por todos os lados e que ela fez um escândalo para não se separar delas. Eles lhe aplicaram um sedativo para que se acalmasse e ele recolheu algumas e trouxe para cá, para quando ela acordasse. Para que ela não ficasse perturbada pela falta das cartas.
Marcos colocou as cartas em frente à Elisabeth. Algumas tinham o papel já desbotado, outras estavam faltando um pedaço. Elisabeth imaginou a amiga lutando para se livrar dos enfermeiros que lhe seguravam os braços e a tristeza em seus olhos quando viu que uma carta havia se rasgado.
-Ele me disse- continuou Marcos- que leu uma na qual ela contava sobre uma viagem de lua-de-mel, o que ele achou muito esquisito, pois ela nunca saiu de Monte Alto e não há registro de que ela tenha se casado.
Elisabeth pegou a primeira carta:


Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1991
Elisabeth,
Quantas saudades!
Há dias procuro um tempo para lhe enviar esta carta. Temos passeado muito e quase não ficamos no hotel. O lugar é lindo! Andamos a cavalo e fizemos trilha. Até agora os dias foram ensolarados e temos aproveitado muito!
(Tenho que te contar... os dois primeiros dias nem saímos do quarto!)...


Elisabeth largou a carta pela metade e começou a ler outra:


Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1991
Elisabeth,
Tudo bem?
Já estamos a 13 dias em lua-de-mel! Que sonho! Estamos muito felizes... Pena que está acabando... Amanhã vamos para a casa dos pais dele e depois voltaremos para nossa casinha, nossa rotina...


Elisabeth largou mais essa carta e virou para Marcos:
-Você leu isso? Está parecendo com...
-Isso mesmo, está parecendo com a nossa lua-de-mel!
-Que estranho... E eu reconheço a letra dela, estudamos juntas por anos, trocamos diversos bilhetinhos em sala de aula...
-Você acha que ela pode... Ter enlouquecido?!- perguntou Marcos, com medo da reação da esposa.
Elisabeth não respondeu. Não encontrou forças. Certamente era um engano. Certamente havia alguma explicação. Sua amiga de infância, com quem tinha partilhado tudo, com quem estudara e passara os finais de semana na varanda de sua casa, ambas entediadas, pois não havia nada para fazer na pequena cidade de Monte Alto.
-Veja as outras cartas- disse Marcos- há muitas semelhanças. Ela cita inclusive uma gravidez. O médico me disse que ela nunca teve filhos.
Elisabeth ficou sem ar. Seria possível que amiga de infância estivesse vivendo – ou sonhando- com uma vida igual a sua? Por quê? O que teria acontecido com ela nesses anos em que ficaram sem se falar para que Anabella começasse a achar que vivia uma vida que não existia?
Uma enfermeira os chamou até a sala do médico. Entraram na sala humildemente mobiliada e se sentaram nas cadeiras indicadas pelo médico, em frente à mesa.
-Sinto muito pela situação de sua amiga, dona Elisabeth- disse o médico e ela o achou muito mais velho do que quando o vira pela primeira vez, enquanto ele conferia a prancheta pendurada aos pés da cama de Anabella. - Nossa equipe foi à casa de sua amiga Anabella chamada pela pólicia.
-Polícia? O que houve? Conte do começo, por favor.
-Uma vizinha chamou a polícia- respondeu o médico- Elas viviam em apartamentos lado a lado há muitos anos. Essa vizinha estranhou quando não há viu sair de casa por vários dias seguidos.
Diante do olhar vago de Elisabeth o médico continuou:
-Ainda não temos nenhuma conclusão. Imagino que ela sofra de algum distúrbio tratável. Algo relacionado ao trauma da morte acidental da família, anos atrás. Guardei uma carta para mostrar a um colega psiquiatra pois, como disse ao seu marido, ela não teve filhos. A senhora gostaria de dar uma olhada? Como eram amigas, talvez a senhora saiba mais do que nós.
Elisabeth pegou o papel dobrado da mão do médico e o abriu:


Monte Alto, 25 de abril de 1991
Elisabeth,
Hoje é o pior dia de minha vida. Perdi o bebê... Não sei com agüentaria passar por toda essa dor sem o Marcos, que tem sido maravilhoso.
Venha nos visitar. Adoraríamos receber sua visita. Estou precisando do seu abraço.
Beijos
Anabella


-Eu... Eu nunca soube de gravidez nenhuma. E nunca recebi nenhuma carta dela. O pouco que conversamos depois que fui embora de Monte Alto foi por telefone e sempre eu que ligava para ela. Ela não tem família, eu gostaria de ficar aqui com ela. Nós pagaremos todas as despesas –Elisabeth disse, olhando para Marcos, que concordou.
-Nosso hospital é modesto, dona Elisabeth. Farei todo possível para dar a primeira assistência a ela aqui e, assim que alguns exames ficarem prontos, ela deverá seguir para uma clínica especializada.
-Nós aguardaremos os resultados.
***
À noite, no hotel, Elisabeth e Marcos discutiam:
-Não podemos ficar aqui para sempre, Elisabeth!- temos nossos empregos no Rio, eu preciso trabalhar, ainda mais com essa sua idéia de pagar o tratamento da sua amiga.
-Não ficaremos aqui “para sempre”. É só até saírem os exames. Você pode voltar, eu fico e pago tudo sozinha.
-Vai pagar tudo como, posso saber?
-Não importa. Ela não tem ninguém. Eu tenho que ficar. Você não entende? Ela representa minha infância, tudo que vivi nessa cidade, eu tenho que ficar.
Marcos, exausto, adormeceu rapidamente. Elisabeth rolou na cama por muito tempo antes de conseguir pegar no sono. “Marcos tem razão, não podemos arcar com todos os exames e remédios. Anabella deve alguém que possa olhar por ela. Tenho que encontrar essa pessoa, assim poderemos voltar para casa...”
No dia seguinte, a esposa foi ao hospital pela manhã, enquanto o marido iria à agência bancária da cidade fazer um saque, para arcar com as primeiras despesas no hospital.
Elisabeth seguiu sozinha para o hospital. Pediu para falar com o médico, pois ainda não estava no horário de visitas. Sentou-se na recepção e aguardou.
***


Elisabeth não conseguia respirar direito. Acordou e percebeu que tinha as mãos e os pés amarrados. Sua garganta estava seca. Tentou chamar por alguém e não conseguiu. O fiapo de voz que saiu não alertou ninguém no corredor. Estava suando. Tentava se lembrar de como fora parar ali e só se recordava de um homem aplicar-lhe uma injeção e a voz de Marcos ao fundo gritando:
-Foi ela, ela é louca! É tudo culpa dela!...
Agora, acordada, tentava compreender porque Marcos gritara que a culpa era de Anabella. Sua amiga vinha sendo mantida sedada para que não se machucasse e os médicos pudessem avaliar seu problema e prescrever o melhor tratamento... Ela não tinha culpa nenhuma.
Tentou chamar por Marcos novamente e a voz saiu mais fraca ainda
O que estará acontecendo, pensou
Será que eu desmaiei? Será que tiveram que me dar uma notícia ruim sobre Anabella?
Continuou chamando pelo marido com as forças que possuía
Até que a porta se abriu. E não foi Marcos quem entrou. Uma enfermeira entrou, soltou uma de suas mãos, que estavam atadas à cama e checou-lhe a pressão.
Elisabeth começou a falar, queria perguntar por que estava ali, mas ainda estava confusa sob o efeito dos tranqüilizantes.
A enfermeira saiu do quarto, deixando seu braço livre e fez sinal para que outra pessoa entrasse.
Então Elisabeth a viu. Estava com o semblante calmo, mas a face estava pálida e abatida. Anabella entrou.
Elisabeth não saberia dizer que horas do dia eram, pois o quarto era muito claro, apesar de não ter janelas
Anabella se aproximou devagar, pegou a mão livre de Elisabeth e a beijou.
Elisabeth ouviu- a perguntar:
-Como está se sentindo?
Elisabeth achou esquisito que a amiga perguntasse isso, afinal viera de longe para lhe perguntar a mesma coisa.
-Eu e o Marcos viemos do Rio para lhe ver. Não poderemos ficar muito. Vou conseguir alguém para cuidar de você, para que eu possa ir embora tranqüila. Apesar de já ter terminado o horário de visita, consegui entrar um pouquinho para te dar um beijo. Gostaria que te trouxesse alguma coisa amanhã?
Elisabeth não respondeu a essa pergunta nem a meia-dúzia de perguntas seguintes que a amiga fez, antes que a enfermeira entrasse e dissesse que ela teria que ir embora.
Quando Anabella saiu, a enfermeira prendeu novamente o braço de Elisabeth à cama e aplicou-lhe uma nova injeção. A picada não doeu. Elisabeth viu o teto girar e mergulhou na escuridão. Agora, sob o efeito dos remédios, poderia inventar a vida que quisesse viver. Voltaria a escrever suas cartas.






 Conto 2


A lista de promessas de Ano Novo de Maria


Nº1 Arrumar um emprego melhor ( afinal, porque eu tentaria melhorar o que eu já tenho?)


Nº2 Emagrecer (com remédios, claro. Por que eu tentaria reduzir medidas de um jeito mais difícil?)


Nº3 Ler um livro por mês ( somente se a próxima novela não for interessante...)


Nº4 Fazer um check up com um médico de confiança (acho que não vou revelar o quanto tenho bebido ou quantas vezes por semana como fritura)


Nº5 Criar uma conta no TWITTER (primeiro, preciso aprender a usar essa coisa e depois conseguir resumir o que achei de último capítulo da novela em 140 caracteres)


N°6 Reunir os amigos várias vezes ao longo do ano ( somente se eu conseguir emagrecer e criar a conta no TWITTER, ou não vou ter assunto)


Nº7 Aprender a cozinhar pratos diferentes (preciso comer algo que não seja enlatado ou congelado)


Nº8 Tomar banho de chuva ( e não levar aquele banho quando um carro passa em alta velocidade por uma poça quando você está com aquela roupa nova...)


N°9 Me manter atualizada sobre a política brasileira ( preciso saber quem apareceu em vídeos recebendo dinheiro. Mais um assunto para a reunião com os amigos. Posso até falar mal do atual presidente. Coitado, ele não tem culpa de ter tanto corruptos trabalhando para ele...)


Nº10 Cumprir essa lista. Vai ser moleza. Afinal, tenho o ano todo para isso!




 Conto 3


Hóspedes indesejados


Natanael não sabia o que responder. Piscou os olhos, aturdido, quando seu analista repetiu a pergunta:

-Você dormiu bem esta noite?

O que eu deveria dizer? Sim, esta noite apenas um fantasma esteve no meu quarto. Foi bem mais tranqüilo do que na noite anterior, quando tive que agüentar uns 100. Há tempos não dormia tanto.

-Então Natan? Conseguiu descansar?

Claro. Na semana passada dormi, acordei e tomei banho todos os dias com essas visitas indesejáveis. São todos de um branco-gelo semitransparente. O que os diferencia é o cheiro.
Alguns têm um odor suave, quase perfumado. Alguns parecem ter saído de um cano de esgoto. Sempre que pergunto o porquê dessa diferença, recebo como resposta:
-Você que não merece sentir nosso cheiro real. Cada um de nós apresenta a você o odor que quer que você sinta.

-Você gostaria de um café?- perguntou o analista, enquanto ajeitava seus óculos de aro de tartaruga.

Às vezes faço um café para todos lá em casa.  Há muitos espíritos precisando de um café forte para relaxar, e o aroma lá em casa melhora bastante.
Quando termino de fazer as devidas apresentações aos fantasmas novatos, todos se ajeitam para assistir a novela. Algumas vezes a confusão é tanta que eu não consigo prestar atenção.  Nesses momentos me descontrolo e chego a gritar para que eles saiam, que voltem para “o além” de onde vieram, que não agüento mais tanta alma penada na minha casa.
Mas no momento seguinte me arrependo e peço desculpas.  Afinal, não quero magoar as visitas.

-Açúcar ou adoçante Natan?

Eu não respondo. Fico fitando o teto do consultório. Decidi fazer terapia para tentar entender porque vejo fantasmas. Esse careca de óculos me disse que em pouco tempo eu me entenderia melhor e eles sumiriam de vez.
Mas a cada dia que passa, aparecem mais deles na minha casa, na minha cama, dentro do meu guarda-roupa.
Não reclamo não; Eles me fazem companhia. Quando chego do serviço, tenho com quem conversar. Com eles posso desabafar tudo que minha chefe me faz passar. A mulher é uma megera.  
Ela arranca meu couro durante o dia e eu conto pra quem à noite? Astolfo, Cleverson, Luiz Cézar...Todos me escutam com a maior atenção.  Tudo bem que minha última namorada não agüentou a pressão. Fazer o que? Acho que ela tinha ciúmes, achava que eu não dava muita atenção a ela.

A sessão dura 50 minutos. Geralmente ele fala 10, me pergunta alguma coisa (que costumo não responder) e praticamos meditação.  É um jeito interessante esse que o velhote tem de tirar o meu dinheiro.
Terminada minha sessão de meditação dou uma corrida na padaria para comprar pão e um queijo.  Preciso ter o que beliscar em casa, porque a noite vai ser longa.  Clodoaldo, o único fantasma que esteve em minha casa na noite passada me disse que o restante estava trazendo um convidado cada para comemorarmos 100 dias com 100 fantasmas na minha casa. Se cada um levar um amigo espectro, serão 200. Me recuso a imaginar o que eles vão aprontar na festa de 200 dias...
Melhor comprar mais café.